segunda-feira, 3 de junho de 2013

LUIS AMADO ANTIGO MNE DE PORTUGAL: CABO VERDE ESTÁ NUMA POSIÇÃO CENTRAL NAS RELAÇÕES SUL/NORTE

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A SEMANA :

Ex-MNE português: Cabo Verde está numa posição central nas relações Sul/Norte 03 Junho 2013

A crise na Europa e do sistema Ocidental está a ditar uma nova ordem mundial, equilibrando as relações Norte/Sul. Neste contexto, considera o ex-ministro português dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado, hoje presidente do Conselho de Administração do Banif e presidente da mesa de Assembleia Geral do Banco Caboverdiano de Negócios (BCN), Cabo Verde pode ocupar uma função central neste "novo mundo", graças à sua posição geo-estratégica importante no Atlântico. Para o ministro dos Negócios Estrangeiros nos últimos governos de Sócrates (PS), o país deve aproveitar este momento de crise no Ocidente e preparar-se para atrair mais investidores, não só da Europa mas principalmente das economias emergentes da África, América Latina e Ásia. A receita é Cabo Verde apostar em novos sectores e consolidar o seu sistema democrático, transformando-se numa plataforma de prestação de serviços e num fornecedor de mão-de-obra especializada.

Ex-MNE português: Cabo Verde está numa posição central nas relações Sul/Norte
- Cabo Verde foi durante muito tempo um parceiro privilegiado de Portugal, que agora vive uma profunda crise económica e financeira. Tendo em conta este contexto difícil, como vê o futuro deste país e das suas relações com Portugal e Europa por extensão?
- Vejo o futuro de Cabo Verde de forma extremamente positiva face às grandes mudanças que estão a acontecer no sistema internacional, em Portugal e no espaço Atlântico. Neste contexto, naturalmente, as relações entre estes dois paises são um vector importante na inserção de Cabo Verde no sistema internacional, resultante das profundas alterações provocadas pela crise. Esta crise não é só financeira, económica, social, ela tem também implicações importantes nos equilibrios geo-políticos globais – e é essa dimensão da crise que nem sempre é devidamente interpretada. Porque no contexto das profundas mudanças que estão em curso, ocorrem também alterações nas relações dos principais blocos regionais. E no espaço Atlântico elas já estão em andamento. Cabo Verde sai de uma função periférica insular que tinha no sistema tradicional do Atlântico para ocupar uma posição no centro de um sistema em que as relações com o Sul se intensificaram ao longo das últimas decádas. Também as relações Norte/Sul no sistema Atlântico tendem a aprofundar-se. É nessa perpectiva, creio eu, que as autoridades caboverdianas e os seus actores políticos se estão a posicionar para fazer face aos desafios que têm no futuro. A relação instrumental com Portugal para este processo de ajustamento estratégico de CV à nova realidade do mundo que está a emergir é importante, assim como o são as relações especiais que tem com o Brasil, os Estados Unidos, Angola ou com a África Ocidental. São relações muito importantes para essa nova centralidade Atlântica que o país vai conhecer num futuro muito próximo.
- Mas Cabo Verde vai precisar de meios para encetar esta grande ofensiva diplomática e económica…
- Também os outros olham para CV de forma diferente. Portanto, não é apenas uma função que decorre de uma ambição de Cabo Verde. É também uma função que decorre da visão que os outros têm relativamente à importância que este país tem como uma plataforma que articula espaços que tenderão cada vez mais a fortalecer as suas relações. Repare que há 20 anos não havia relações Sul/Sul no espaço Atlântico, é um dos elementos novos desta crise. É que o Atlântico Norte vive uma crise nos dois pólos, ou seja, tanto nos Estados Unidos da América quanto na Europa. Mas a vitalidade das relações Sul/Sul entre a África e a América Latina é totalmente nova. É a primeira vez, depois da fase da escravatura, que as relações económicas, culturais, politicas entre os blocos do Sul se desenvolvem. Isso é extremamente importante, do meu ponto de vista, para o desenvolvimento quer da América Latina e da África quer dos dois pólos do sistema Atlântico Norte – a Europa e os Estados Unidos – que também encontram, necessariamente, em Cabo Verde uma relação Norte/Sul que é um vector determinante para os seus interesses no futuro.
- Nos EUA já se nota alguma movimentação nesse sentido. Com o Reino Unido não há quase nenhuma ligação…
- Não há, mas fortaleceram muito as relações em termos de investimento no turismo, que infelizmente a crise perturbou. Mas claramente evidenciam uma atenção crescente à importância de Cabo Verde como pólo e plataforma para essas várias funções com a África Ocidental.
- Os críticos dizem que ainda não entrámos como devíamos em África, que nos preocupamos mais com o Atlântico, as relações, os acordos especiais com a União Europeia. O deputado Jorge Santos (oposição) que representa Cabo Verde no parlamento africano, considera “inadmissivel” o facto de Cabo Verde não ter um representante na União Africana, em Adis-Abeba.
- A África Ocidental e a CEDEAO têm vivido momentos de grande instabilidade e perturbação. Mas creio que este governo, do PAICV, valoriza muito a relação com a África Ocidental e a União Africana. Foi o que percebi quando eu era ministro – era dada uma grande atenção à relação com a CEDEAO, como que um contra-peso à relação forte e às parcerias estratègicas com a União Europeia, através de Portugal, no plano bilateral. Essa atenção estava presente na democracia e na acção política do vosso governo. Assim como no aprofundamento da relação com o Brasil, o Golfo da Guiné, Angola, Guiné-Equatorial. Essas acções foram desencadeadas nos últimos anos para dar mais “intimidade” às relações com essa região, o que reflecte também uma orientação estratégica em relação ao continente africano. É essa relação que o vosso país tem que reforçar durante os próximos tempos porque é essa relação que permite reduzir a ultra-periferia que a sua dimensão insular lhe impõe no sistema Atlântico, em contraponto com o sistema do Índico e do Pacífico – para onde se deslocou uma parte importante dos recursos do crescimento económico durante estas últimas duas décadas. Nós precisamos reforçar o sistema do Atlântico como contra-peso para reequilibrar o sistema internacional que está a emergir, depois de três decádas de globalização, e a potenciar o peso da Ásia, do Índico e do Pacífico no sistema económico-financeiro, politico e internacional.
- Mas com a América Latina a nossa relação resume-se ao Brasil, não é?
- As relações entre África e América Latina também se desenvolveram apenas na última década. É muito recente também a atenção do lado de lá do Atlântico Sul à relação com África. Praticamente o paradigma de relação e de acção política e diplomática dos países da América Latina – todos sem excepção, incluindo o Brasil – tinha como catalisador os EUA. Em alternativa à Europa – verdadeiramente só na última década –, e em grande parte devido à mudança que o Brasil imprimiu às suas relações internacionais com o governo de Lula, é que a América Latina passou a dar atençao à sua relação com o continente africano. Agora, quer a Venezuela quer a Argentina e o Uruguai passaram também a dar outra atenção à relação com África…
- Isso não será antes um movimento da Esquerda, tendo em conta a natureza dos partidos que hoje estão no poder nesses países?
- Não, tem a ver sobretudo com uma nova visão da globalização. O presidente Lula da Silva percebeu rapidamente que o seu programa político reduzido à expressão interna não teria nenhuma consequência, precisamente pela natureza das interdependências que a economia brasileira conhecia. Tendo percebido isso, Lula foi à Cimeira de Porto Alegre contra a Globalização, mas foi de imediato a Davos, onde estavam os poderosos que davam as cartas na economia mundial. E passou a fazer isso sistematicamente. Portanto, Lula percebeu que o Brasil como actor global tinha uma responsabilidade no desenvolvimento das relações Sul/Sul, mas também no desenvolvimento de laços de compromisso com o Norte. Foi essa a dimensão nova que ele e o ex-chanceler Celso Amorim trouxeram às relações económicas do Brasil, e teve continuidade com o actual chanceler António Patriota. Com essa dimensão nova, a diplomacia brasileira de alguma forma mudou a paisagem das relações Sul/Sul no Atlântico, com o Brasil a abrir embaixadas em todos os países africanos. Com o presidente Lula da Silva, o Brasil foi a quase todos os países de África da costa atlântica e que fazem fronteira com o Brasil Atlântico, que pretende afirmar-se neste século como grande potência do Atlântico. O Brasil é o país do Atlântico com maior fronteira marítima e só tem fronteira ali, ao contrário dos EUA que tem uma fronteira para o Pacífico que ocupa cada vez mais e à qual dá cada vez mais dimensão. Portanto, se olharmos para o que será o Atlântico daqui a 20, 30 anos, veremos que não terá nada a ver com o Atlântico que nós hoje conhecemos. É nesse Novo Sistema Atlântico que Cabo Verde tem uma centralidade inquestionável, um papel e uma função estratégica muito importante a desempenhar.
- A seu ver o Atlântico está em vias de se tornar no corredor por onde vão passar as maiores transformações económicas, o centro de uma nova relação entre Norte e Sul?
- Estou a ver um fenómeno, um processo novo muito recente por parte do Atlântico Norte, que é o espaço mais densificado de evoluções sociais, estruturais, políticas, financeiras e económicas. Vamos a caminho de um grande mercado interno que conhecerá provavelmente um novo impulso, se a Europa resolver o seu problema e os EUA mantiverem a orientação quanto às relações transatlânticas do Norte. Mas essa densidade de relações desenvolve-se há mais de um século e meio, se tivermos em consideração primeiro a colonização dos EUA e depois todo o desenvolvimento que os EUA assumiram como potência hegemónica do sistema Atlântico. As relações Sul/Sul do Atlântico têm uma década de expressão, portanto tudo isto está numa fase muito embrionária. As relações de equilíbrio entre o Norte e o Sul têm um contexto geo-politico completamente diferente depois desta crise. O que essa crise representa, de alguma forma, é o fim da hegemonia do sistema ocidental no Comércio internacional, e nas relações Norte/Sul que eram sempre encaradas como relações do domínio colonial ou neo-colonial. A crise na Europa e do sistema ocidental, a emergência do Sul e a ascensão das potências emergentes favoreceram e equilibraram as relações Norte/Sul. Nós vamos entrar numa fase em que as relações serão menos marcadas pelos complexos da História, pelos preconceitos, dando lugar a mais populações verdadeiramente autonómas e a mais equilibrio entre os povos que foram colonizados e os povos colonizadores do Norte. Acredito que entramos já numa fase nova de reeorganização do sistema atlântico. Nessa perspectiva, entendo que Cabo Verde tem que equacionar o seu futuro, tendo em conta a função central que vai representar.
- A função de Cabo Verde será mais estratégica ou económica?
- A função de Cabo Verde será mais estratégica e tem que ser interpretada como tal, para o país poder beneficiar das contrapartidas económicas e financeiras que esse processo lhe conferirá.
- Estaria a pensar em quê?
- Se Cabo Verde for capaz de assumir uma função estratégica nesse processo de reorganização do sistema atlântico, naturalmente os diferentes pólos e os diferentes blocos económicos vão encarar este país de uma outra perspectiva.
- Plataforma para a África, para os mercados africanos?
- Cabo Verde tem um sistema democrático estável. Num contexto ainda de grande insegurança, quando os investidores internacionais ainda abordam a realidade política africana com alguma desconfiança, sendo um país da CEDEAO e da União Africana, Cabo Verde tem como activos fundamentais a estabilidade política e governativa, como nenhum outro pais em Africa foi capaz de demonstrar ao longo das últimas décadas.
- A qualidade da nossa democracia será portanto a mais importante matéria-prima destes novos tempos?
- Essa qualidade política é sem dúvida um activo extraordinário. Acredito que se Cabo Verde intensificar mais as relações com a África Ocidental, o Golfo da Guiné, a América Latina, a Europa e os EUA – regiões onde estão a suas principais comunidades emigrantes – será rapidamente identificado como um pólo de serviços e de trocas importantes nessa nova economia do Atlântico que vai emergir por força justamente dessa nova dinâmica da economia mundial…
- Está a falar dos clusters aeroportuários, aéreos, marítimos, tecnologicos?
- Não tenho acompanhado de perto esses projectos, mas acho que tudo isso faz sentido dentro dessa perspectiva. Tudo o que o país puder desenvolver em matéria de transportes, comunicação e serviços faz sentido se tivermos em conta a aproximação dos blocos económicos do sistema atlântico e, em particular, o enorme esforço de investimento que África vai conhecer. Face ao potencial de recursos que possui, cada vez mais exigentes para corresponder às necessidades de uma economia muito dependente de matérias-primas, de energia, esse potencial que o continente africano tem será nas próximas décadas um factor relevante no crescimento da economia mundial. Todos os grandes actores económicos, seja o Estado, sejam as empresas, as multinacionais, estão hoje a olhar para África com um interesse estratégico muito forte. Cabo Verde pode claramente beneficiar dessa enorme vaga de crescimento que aí vem para o continente africano.
- O FMI diz que a economia africana vai crescer em média 5,5 por cento em 2013 enquanto o ocidente dificilmente ultrapassa a barreira dos 2%.
- Hoje o crescimento da economia africana tem um peso considerável no crescimento da economia mundial. Como sabe, actualmente a economia no mundo cresce, precisamente, porque as economias emergentes estão a levar a reboque o crescimento da economia mundial. A América está com uma taxa de economia muito baixa, a Europa está em recessão já pelo segundo ano consecutivo. Portanto, o que pesa hoje no crescimento da economia mundial são as economias emergentes do Sul, nomeadamente em África, na América Latina e na Ásia, sobretudo por força dos interesses da China e da India. Este processo vai acelerar ainda mais. A regulação de conflitos em África está a entrar numa fase diferente, há mais maturidade política e democrática, a natureza dos conflitos está a reflectir uma abordagem diferente dos actores nacionais, dos problemas dos seus países, mais capacidade de compromisso, de diálogo entre as elites emergentes. Portanto a África subsaariana, sobretudo, vai conhecer um período muito interresante…
- Mas alguns desses problemas são complexos e difíceis de resolver como o tráfico de drogas na Guiné-Bissau, a situação política e militar no Mali…
- Sim, esses problemas estão ainda por resolve, mas, no conjunto do continente, a força do crescimento e da estabilidade na África Austral, na África Central, de uma parte da África Ocidental, e ainda da África Oriental, já projecta um futuro melhor. O fenómeno no Norte de África tem a ver também com uma questão civilizacional que está por resolver ainda no mundo árabe e islâmico e que marca de forma diferente os problemas dessa região. Mas a Sul do Saara, de facto, há hoje uma realidade política e económica relativamente diferente do que era há 10 ou 15 anos.
- Mas a economia de Cabo Verde está a passar por momentos complicados que cheiram a recessão.
- É natural, a vossa economia está muito dependente da economia europeia. Depois, Cabo Verde passa por um período de transição para país de crescimento médio. Tendo saido da esfera dos países mais directamente assistidos pelos programas de ajuda ao desenvolvimento, tem essa dificuldade nesta fase. Enquanto o sector privado não desenvolver mais alguns sectores da actividade económica, enquanto o investimento externo não se consolidar neste mercado, é natural que tenham aqui uma situação de transição.
- Transição ou um handicap que o impede de crescer por causa da dependência da ajuda externa?
- O sector do turismo, pelo que percebo, desenvolve-se bem. É actualmente o sector mais dinâmico em algumas ilhas, e no conjunto dos equilíbrios macro-económicos do país tem hoje um peso considerável.
- Cabo Verde não estaria melhor se tirasse proveito da situação caótica que o Magreb vive?
- Sim, é provável. Não posso pronunciar-me em pormenor sobre este tema, porque não o acompanhei. Mas sinto que Cabo Verde pode beneficiar da grande instabilidade que o Mediterrâneo conhece. Como país africano pode também tirar benefício de algum exotismo que oferece relativamente aos outros mercados turísticos e aproveitar essa diferença, pois está muito perto da Europa. Sim, acho que há um potencial grande a explorar – para Cabo Verde continuar a ser um pais com perspectivas…
- A nossa moeda está ligada ao euro. Há algum perigo de ela vir a sofrer com essa alavancagem ao euro?
- Não. A vossa moeda está ligada ao euro, mas a economia de Cabo Verde não está dependente do euro como está Portugal, que é um país-membro da União Europeia. Nós não temos moeda própria, portanto estamos vinculados a um compromisso que, de facto, nos constrange, nos limita nesta fase. Cabo Verde, apesar de tudo, tem uma estabilidade que decorre dessa ligação, desse PEG (Taxa de Câmbio Fixa) com o euro. E indirectamente é atingido pela instabilidade, pela incerteza que hoje a zona euro conhece. Mas o euro, apesar de tudo, não se tem desvalorizado significativamente, o que provavelmente ajudaria…
- O nosso “Trust Fund” não corre riscos?
- Eu não tenho acompanhado esse dossier. Não faço nenhum comentário sobre essa situação.
- Mas não acha que a crise em Portugal pode afectar\de alguma forma esse nosso “Trust Fund”?
- Não. Acho que tem havido uma monotorização, um acompanhamento nos termos desse acordo. Aliás foi um acordo do meu tempo, no Governo de António Guterres. O acordo foi anuncidado há muitos anos, mas creio que as garantias desse acordo ainda valem.
- Há uma questão que agora está a mexer muito com a Europa, que é o estado social – desemprego, cortes na segurança social, pensões, subsídios de desemprego, na saúde, na educação. De que forma essa questão nos afecta em Cabo Verde, tendo em conta que temos uma grande comunidade em Portugal e em outras partes da Europa.
- Afectará na exacta medida que afecta os portugueses em geral, não há nenhuma discriminação nesse aspecto. Portanto, os caboverdianos que estão a beneficiar do sistema continuarão a beneficiar na exacta medida que os portugueses. E quando houver alguns cortes no sistema, os caboverdianos também terão. Essa é a orientação política de fundo que é seguida pelo actual governo, mas é natural neste processo de reajustamento em curso em Portugal e no conjunto das economias europeias. O ajustamento não é apenas na economia portuguesa, é um ajustamento macro-económico das condições do estado social europeu actual.
- A nossa relação com Portugal nos últimos tempos, sobretudo no Governo de Sócrates, permitiu-nos ir aos bancos portugueses que nos emprestaram dinheiro para financiar o nosso desenvolvimento. Recorremos a uma série de linhas de crédito de ajuda concessional para o “Casa para Todos”, para pontes, barragens, estradas. Haverá agora alguma mudança de planos?
- Não sei, não tenho acompanhado a actividade governativa no contexto dos constrangimentos financeiros que o país conhece na linha de crédito. Pura e simplesmente devem ter acabado, há algumas que ainda estão provavelmente em realização.
- Algumas eram comerciais?
- Sim, havia algumas comerciais, outras de investimento nos sectores e nas infraestruturas. Das muitas obras públicas feitas em Cabo Verde nos últimos anos, algumas foram financiadas através de linhas de crédito abertas pelo tesouro português de ajuda concessional e o Governo cabo-verdiano mereceu-as, a par de outros governos que também tiveram acesso à ajuda ao desenvolvimento da cooperação portuguesa. Mas admito que, no quadro dos grandes constrangimentos financeiros que o país atravessa, uma parte dessa ajuda deve ter sido hoje abandonada. Mas não lhe posso dizer em pormenor. Já não estou lá há alguns anos.
- A cooperação também diminuiu?
- É natural que tenha diminuido.
- Também a nível da educação, da saúde?
- Também é natural. Como sabe, estamos num processo de reestrututuração a nível interno muito duro, exigente, com implicações muito grandes em alguns sectores sociais em Portugal. Portanto, é natural também que no domínio da ajuda ao desenvolvimento e da cooperação alguns cortes tenham afectado alguns dos programas que estavam em curso.
- No início da nossa conversa defendia uma posição geo-estratégica de Cabo Verde no mundo, ancorada na economia global. Como é que vê o papel da China em Cabo Verde?
- A China desenvolve hoje a sua estratégia internacional em todos os teatros do mundo, em todas as regiões. A China é um actor global, a sua ascensão rápida nos últimos 30 anos é um dos fenómenos mais extraordinários das últimas décadas na economia e no sistema político internacional. É natural que em Cabo Verde haja uma representação forte da China, assim como tem em toda a África Ocidental e em todo o continente africano. Não me surpreende, essa grande potência está num processo de afirmação internacional, com um papel positivo na gestão dos grandes problemas e um diálogo estratégico muito estreito com a outra grande potência: os Estados Unidos da América. Estão muito ligados os interesses das duas potências que neste momento têm maior peso no sistema internacional, no sistema financeiro, na economia global. Portanto, não vejo esse facto como algo surpreendente, é normal. É uma potência que tem uma dimensão global e que procura afirmar isso mesmo também no campo diplomático. A presença da China, aqui também, acontece no plano económico, não me surpreende.
- Há vozes a defender que a relação Sul/Sul poderia ser mais dinâmica, se, por exemplo, houvesse uma ligação marítima frequente entre as duas margens.
- Mas isso é normal, só há uma década esses países começaram a desenvolver relações de peso e com densidade políticas. É natural que esse processo demore o seu tempo a consolidar linhas de relações comerciais, económicas e financeiras mais sustentadas. Mas esse processo já se iniciou, já está desencadeado e não tenho dúvidas de que Cabo Verde ocupará uma função importante nesse novo sistema que está em gestação.
- Os tais clusters serão importantes nesse processo?
- Sim, seguramente. Vejo Cabo Verde mais como uma plataforma de serviços importantes para toda essa nova economia atlântica que vai emergir.
- No turismo de Cruzeiros também?
- Sim, serviços turisticos, financeiros, seguradoras, comércio de uma série de empresas que operam em diferentes regiões da África e do espaço Átlântico. Cabo Verde pode desenvolver muito essa função na nova economia atlântica que está a crescer.
- Portugal já ajudou muito Cabo Verde. E agora, qual o seu papel no desenvolvimento desta nova função que Cabo Verde é chamado a desempenhar?
- Portugal tem primeiro que arrumar a sua casa, pois está com sérios problemas.
- Sim, mas não continuará Portugal a partilhar o seu “know-how” com Cabo Verde?
- Portugal está a arrumar a sua casa. A crise que enfrenta é a mais grave que viveu nas últimas décadas, seguramente. Portanto tem um problema interno que exige muita energia e muita concentração interna, mas naturalmente que essa vocação que tem assumido e desenvolvido – transferência de “know how” e recursos, designadamente tecnológico, para Cabo Verde e para outras economias da região – será sem dúvida um dos principais vectores da nossa relação no futuro. Repare, hoje grande parte dos nossos recursos humanos está à procura de oportunidades também fora do espaço europeu. Percebeu-se que a relação estreita com a Europa não satisfaz as expectativas e as necessidades do país.
- A Inglaterra já não quer mais europeus no seu espaço.
- A Europa está em crise, em recessão, sendo assim é preciso ir para onde há crescimento, investimento, emprego, oportunidades de negócio. E cada vez mais, sabemos que não é na Europa. Essas oportunidades encontram-se na América Latina, em África e em muitas regiões da Ásia, onde há uma vibração de crescimento, criação de riqueza que naturalmente atrai cada vez mais as expectativas das novas gerações de portugueses.
- Disse numa outra conversa que Cabo Verde tem muitos quadros. Mas terá o país condições para absorver toda essa força de conhecimento?
- Cabo Verde tem formado muitos quadros ultimamente e será seguramente, das sociedades desta região, a que tem gerado mais quadros com preparação superior. Cabo Verde pode encontrar nos mercados mais a Sul, uma relação importante para o seu próprio processo de desenvolvimento. Mas esse processo resulta de dinamismos que vão para lá dos Estados. Um empresário que quer garantir a sobrevivência da sua empresa não fica à espera que o Estado resolva o seu problema. Procura o seu caminho e vai à procura de alternativas. Encontrei por todo o mundo empresários portugueses que não ficaram à espera do Estado. Tiveram dificuldades e foram à procura das oportunidades. Creio que é isso que se está a reflectir na nova dinâmica da economia mundial que a globalização impôs. Há mais informação, conhecimento, liberdade de circulação, portanto há mais oportunidades. Mas as oportunidades têm que ser encaradas num espaço extra-territoral, não é só no interior das nossas fronteiras. A ideia do emprego para a vida está definitivamente posta em causa. Aliás, a sociedade cabo-verdiana tem essa capacidade de deslocação.
- Há dias a ministra das Finanças, Cristina Duarte, deixou entender que o Estado de Cabo Verde já promove concursos internacionais para a gestão de determinados dossiês, ou seja, quando não consegue recrutar quadros no país, lança concursos para encontrá-los fora. Isso é um bom sinal?
- É essa a dinâmica de inserção numa economia mais vasta. No fundo, Cabo Verde procurou relançar-se há 20 anos, através das suas relações com a economia europeia, quando fez a transição para a economia de mercado e para o regime pluripartidário. Esse processo foi, de alguma forma, o que alimentou até hoje todo o trabalho da economia. Mas cada vez mais, Cabo Verde vai ser atraído pelas dinâmicas de valorização de outros mercados que estão a crescer. Esses mercados têm um grande potencial para os recursos humanos. Quer a África Ocidental, quer o Brasil, quer a América Latina e Angola são mercados que, pela sua vitalidade, podem atrair cada vez mais quadros cabo-verdianos.
- Outro dia esteve cá a ministra alemã das energias renovavéis e deixou ficar a impressão de que a Alemanha pode vir a trabalhar com Cabo Verde para que o país venha a funcionar com 100% de energias renováveis. O que acha desta nova relação com a Alemanha? Seria algo benéfico para Cabo Verde?
- Não tenho qualquer dúvida sobre isso, pois as energias renováveis representam um sector que a Alemanha desenvolveu muitíssimo. Fez essa opção, abandonou a energia nuclear, tem limitações ambientais que condicionam o uso de energia fóssil e enfrenta bastantes problemas neste aspecto, apesar de possuir uma reserva considerável de gás natural. Mas os ambientalistas na Alemanha, que são muito poderosos, vão fazer seguramente do sector alternativo das energias renovavéis um vector fundamental de inovação e de desenvolvimento tecnológico. Sendo assim, se Cabo Verde garantir uma progressão neste sector com a Alemanha terá um parceiro muito empenhado no desenvolvimento tecnológico. Provavelmente a Alemanha vai passar a dar mais atenção a este espaço sul do Atlântico, à relação com a África, com o Brasil, a América Latina. É natural que queira essa relação com Cabo Verde numa forma mais ambiciosa para o futuro, no quadro das relações bilaterais e de cooperação. Faz todo o sentido, do meu ponto de vista, que se aproveite esta oportunidade e se fortaleça a relação com a Alemanha nesse sector.
- Já com o Reino Unido, Cabo Verde não consegue fazer arrancar uma cooperação efectiva Estado a Estado.
- Acredito que, desde a Guerra das Malvinas as relações do Reino Unido tenham sido perturbadas tanto com a América Latina quanto com África. Mas em Cabo Verde observamos o interesse de alguns grupos ingleses na imobiliária turística tanto no Sal quanto na Boa Vista e em outras ilhas. Alguns projectos só não se concretizaram devido à crise na Irlanda.
- Foi ministro dos Negócios Estrangeiros durante muito tempo e sabe que o grande projecto de Amílcar Cabral foi a unidade Guiné-Cabo Verde, não tanto pela sua dimensão política como muitos a interpretaram mas na base de complementaridade económica. Só que a Guiné-Bissau nunca mais sai da profunda crise política, social e económica em que está mergulhada há décadas. Como vê o futuro das relações entre os dois países vizinhos e irmãos?
- Acho que o projecto de Amílcar Cabral já não tem nenhuma actualidade. Mas penso que, apesar de tudo, a Guiné tem um futuro. Viveu uma fase de grande instabilidade que a perturbou e prejudicou muito. A sociedade guineense ao longo de mais de uma década vive com problemas. Lembro-me de assistir, aqui em Cabo Verde, à chegada de uma fragata portuguesa que, em 1998 ou 1999, trouxe para a Praia refugiados da Guiné. Desde então o país passou por outras situações de instabilidade. Mas agora o circulo já está a fechar, já não há muito espaço para mais aventuras. Acho que definitivamente esseprocesso vai encerrar. Acredito que até o fim do ano possa haver um acordo que permita normalizar a vida política da Guiné-Bissau. Ramos Horta tem estado bastante activo como representante do Secretário-geral das Nações Unidas. Aliás, a sua vasta experiência vai levá-lo a bom porto: tem a nível internacional uma imagem e carisma que devem fazer alguma diferença. Por isso acredito que até o final do ano teremos boas notícias da Guiné-Bissau. Repare que a Guiné mesmo em plena crise política, militar, nunca resvalou para um confronto civil e para formas de violência de massa. Por outro lado, sempre realizou eleições com relativa tranquilidade. Há no povo guineense um fermento de paz e de vivência democrática que são sem dúvida atributos muito importantes para a rápida normalização da Guiné-Bissau. Acho que 2014 vai ser um ano de mudança neste ciclo prolongado e doloroso em que o povo da Guiné-Bissau tem vivido.
- A CPLP foi acusada de uma certa intolerância e de inviabilizar com isso o processo de paz.
- Acho que é preciso ter em consideração que, no quadro da regulação de conflitos nesta região de África, o papel da CEDEAO é incontornável e qualquer outro actor, seja no plano bilateral, seja a nível multilateral, que queira actuar tem que ter sempre em consideração esse facto. A CEDEAO, no âmbito das suas competências e atribuições, e os estados membros dessa comunidade serão sempre ciosos de qualquer interferência que não tenha em consideração o estatuto que têm à luz da carta da União Africana e das Nações Unidas. É preciso ter em consideração sempre que quem toma as decisões com legitimidade multilateral é a CEDEAO, no âmbito das competêncies que tem e das suas atribuições enquanto organização regional. Ramos Horta está muito sensibilizado para isso, acredito que ele vai ajudar a resolver os problemas da Guiné- Bissau ao longo dos próximos meses.
- Uma situação complicada para Cabo Verde, que está nos dois papéis, visto que é membro da CEDEAO e da CPLP.
- Pois, é preciso definir as atribuições de cada organização e suas competências, e qual o espaço de manobra que cada uma das organizações tem neste processo. É claro que se trata de um conflito de âmbito regional, na área CEDEAO, e naturalmente os Estados membros terão legitimidade para tomar as decisões qua acharem melhor. Mas sempre numa perspectiva realista e que respeite os ditames" FONTE JORNAL A SEMANA DE CABO VERDE.

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