Crítica

Um memorial do music-hall


Paulo Pimenta
Rogério de Carvalho e Jorge Ribeiro têm uma parceria que é das mais duradouras, consistentes e criativas do teatro português. A mesma cumplicidade têm As Boas Raparigas com o encenador. A expectativa em torno de uma montagem de Music-Hall, de Lagarce, uma peça sobre todas as peças de teatro, e como elas se vão construindo enquanto se apresentam, e reconstruindo depois, mais tarde, na memória, é compreensível.
O texto é a reconstituição de um espectáculo, contada ao público pelos seus actores, em especial pela Rapariga, artista de variedades, que protagoniza, por assim dizer, o espectáculo, e domina a peça o tempo quase todo, mas também, ocasionalmente, pelos seus partenaires.
Com ecos das peças de Beckett, em especial À Espera de Godot, pelo lado das lembranças de números do music-hall, mas também de Horovitz, em particular o texto precisamente intitulado Didascálias, Lagarce consegue o feito de criar uma cena a partir da memória da cena, e com isso sublinhar o modo como actuar, no teatro, é uma metáfora das actuações na vida real. Claro, o teatro também é real. Este espectáculo é sobre todos os espectáculos, mas é também sobre a vida comum.
O espectador rever-se-á na situação encarnada por Maria do Céu Ribeiro, António Júlio e Paulo Mota. Para isso concorrem a destreza dos actores, capazes de desferir golpes com as palavras na consciência de cada membro do público.
O encenador levou os actores a encontrarem o seu caminho no labirinto de relatos de Lagarce, de modo a que se apropriem do texto e a cena emirja dessa apropriação, sem mais efeitos. Não só o espaço e os actores são iluminados. É sobre a narrativa que incide a luz desenhada por Jorge Ribeiro, criando significados não-verbais que completam as palavras, sim, mas também o tom, o sentido, a ironia e a comoção jogados pelo pequeno elenco.
Rogério de Carvalho foi encontrando na sucessão de cenas criadas pela iluminação uma outra memória de vários espectáculos, concretizando uma espécie de comentário aos shows de variedades que a Rapariga evoca.
No final do espectáculo, é evocada uma actuação, ou uma série de actuações, perante uma plateia vazia. O mundo todo é trazido para a cena. O espectáculo reproduz um universo que se basta a si mesmo, paralelo ao universo real, em que o público tem um lugar, como se um espectáculo de teatro fosse um microcosmos.
A peça parece querer levar o espectador a perguntar-se qual o seu papel no meio disto tudo. Como obra de ficção, por um lado, e experiência real, por outro, o texto de Lagarce é uma pérola da dramaturgia contemporânea, que provoca o espectador e, eventualmente, o fará assumir as suas responsabilidades, ou pelo menos reflectir sobre elas. A encenação de Rogério de Carvalho materializa esse gesto inicial do autor e, com o desenho de luz e as falas dos actores, supera-o."
FONTE: NEWSBRIEF/PÚBLICO